sábado, 24 de março de 2012

PORTO ALEGRE, 240 ANOS

MARCELO ROCHA, PROFESSOR DA UNIPAMPA DE SÃO BORJA - ZERO HORA 24/03/2012

Certa vez, em Porto Alegre, o poeta Mario Quintana levou o jornalista e escritor carioca Marques Rebelo a conhecer o nosso pôr do sol. Quintana jactava-se da beleza do espetáculo e Rebelo examinava e ouvia tudo, sempre quieto. Na volta ao Rio de Janeiro, o escritor carioca escreveu: “Eles não têm nada para mostrar e ficam lá falando daquele crepúsculo”. “Que enorme punhalada!”, podemos pensar. Mas, talvez, o escritor carioca tivesse um pouco de razão e o melhor de Porto Alegre seja, até hoje, nosso patrimônio imaterial, isto é, nossas formas de expressão, nossa natureza, cultura e costumes. E, para quem não tenha uma ligação afetiva com a cidade, é quase impossível compreender esta relação.

Como explicar, por exemplo, a satisfação de flanar pela Redenção no domingo de manhã, percorrendo a José Bonifácio, com o chimarrão, e encontrando amigos pelo caminho? De que modo expressar a beleza de jacarandás e ipês que emolduram a paisagem da cidade com seu colorido? Quem resiste a uma caminhada na Lima e Silva, entrando e saindo de cafés, bares, livrarias e dobrando na República? Destas pequenas felicidades é feita Porto Alegre, cidade do amor indizível. Assim como sugere Quintana, o mapa da cidade é como se fosse a anatomia de nosso próprio corpo.

No mapa que podemos examinar, há milhares de pontos de referência. O jornalista Nilo Ruschel descreveu a Rua da Praia, dos anos 40, em memórias de uma cultura afetiva composta por nomes que trabalhavam no Centro, como a Maria Chorona e o João das Balas. Moacyr Scliar, nosso inesquecível imortal, rememorou o Guaíba, como o rio de sua vida e lembrou que ali andava de barco e pescava. Luis Fernando Verissimo, o mestre da crônica, lembra-nos dos mal-entendidos que cercam a cidade. A começar pelo orgulho de um rio – este mesmo Guaíba – que não é rio. Além disso, há uma rua da praia que já não começa e, tampouco, termina em praia. Enfim, uma cidade nada previsível em seus diversos retratos.

Porto Alegre pode ser, também, um porto nada seguro, mas prolífero e militante. Foi palco de resistência na Campanha da Legalidade, com Leonel Brizola, e abrigou na esquina maldita (Osvaldo Aranha com Sarmento Leite) a mais fina estirpe de intelectuais que lutavam por um país democrático, nos anos de chumbo. E, por falar em transgressão, Nei Lisboa cantou a fauna ensandecida do Ocidente cujo comportamento liberal e utópico desafiava os padrões mais conservadores, no final dos anos 70. O próprio Nei é, ao mesmo tempo, um patrimônio e uma metonímia desta cidade de apaixonadas discussões.

Por fim, convido o amigo leitor ou leitora para largar o jornal e dar uma espiadinha pela janela para entender, sob a luz de outono, o encanto desta cidade que escapa de quaisquer definições. Muitos outros retratos da cidade poderiam ter sido referidos. Mas nas ruas que guardam parte de nossa memória afetiva e no mês de seu aniversário, só nos resta, após o “Parabéns”, desejar baixinho, tal como pedia em versos o poeta com quem começamos este singelo texto: “Oh céus de Porto Alegre, como farei para levar-vos para o Céu?”.

AS NARRATIVAS DA CIDADE



CARLOS ANDRÉ MOREIRA, ZERO HORA 24/03/2012

Do triunfalismo orgulhoso do século 19 ao humor ácido do 21, os escritores gaúchos criaram uma Porto Alegre múltipla na literatura ficcional produzida na cidade
Uma cidade não se constrói apenas com pedra e asfalto, mas com representações. Nesse sentido, examinar a maneira co­mo os escritores retrataram a Porto Alegre que na segunda-feira completa 240 anos é também fazer um passeio elíptico pela imagem que a própria Capital faz de si mesma. É também reencontrar, ainda que na imaginação, uma Porto Alegre apenas entrevista nas ruínas urbanas que uma cidade em crescimento constante deixa atrás de si.

As representações urbanas da cidade no século 19 tendem a enfatizar seu caráter de sociedade paroquial, um lugar que, embora grande em comparação às demais do Estado, ainda é uma comunidade de poucos habitantes e ritmo ameno. A concepção da Porto Alegre do século 19 e início do 20 como uma joia da Belle Époque é um clichê recorrente da literatura que se ocupou da cidade, e parece ter origem já nas obras daquele período, como no romance O Perdão de Andradina de Oliveira, uma história de adultério que faz seus personagens passearem pela cidade em 1910, nascente metrópole com seus bondes, confeitarias chiques, fábricas, banda marcial e iluminação elétrica.

Significativamente, Porto Alegre começa a ganhar espaço não só como pano de fundo, mas como cenário ficcional com caráter próprio, em simbiose com seus personagens, a partir dos anos 1930, quando a cidade também passa por um surto de expansão física e modernização urbana e tecnológica. Clarissa, de Erico Verissimo, um dos marcos dessa explosão urbana moderna na literatura do Estado, é de 1933. Os Ratos, de Dyonélio Machado, outro romance inaugural, é de 1935. O mesmo período de meados da década de 1930 é que testemunha a abertura da Avenida Borges de Medeiros e a construção do Viaduto Otávio Rocha – obras públicas de grande envergadura com as quais, lembra a arquiteta Cláudia Pilla Damásio em sua dissertação Porto Alegre na Década de 30: Uma Cidade Idealizada, Uma Cidade Real, a intendência municipal, de inclinação positivista, dedicava-se a um projeto de modernização de Porto Alegre. É o mesmo período em que Erico desenvolverá o seu “Ciclo de Porto Alegre”, inaugurado com Clarissa e encerrado com O Resto é Silêncio, de 1943.

– Embora se contem exemplos anteriores de literatura urbana, não é uma coisa significativa. A figura chave é mesmo a partir daquele momento. No Erico, com Clarissa, a cidade faz parte da experiência dos personagens, o modo como eles agem é condicionado pelos espaços do município em que atuam. A cidade no Erico não é só pano de fundo, é personagem – comenta a professora da UFRGS Regina Zilberman, autora de A Literatura no Rio Grande do Sul.

Erico apresenta uma visão ao mesmo tempo lírica e melancólica da cidade, descrita com a exuberância visual e plástica com que o autor construía os cenários de seus romances. É uma descrição de um autor maravilhado ele próprio com a Porto Alegre que se ergue a seu redor. Como apontou um dos primeiros críticos de Caminhos Cruzados, Dante Costa, a descrição que Erico faz da cidade “é uma espécie de exposição enternecida do quotidiano, com comentários e poesia. Assim como se o autor, de repente, se alçasse sobre a vida, e de uma distância breve, que permitisse a visão geral e também a sinuosidade dos detalhes, nos mostrasse o que acontece”.

Já Dyonélio desce o olhar ao rés-do-chão para flagrar as figuras miúdas esmagadas pelo processo de urbanização. O crescimento de uma cidade capitalista nos moldes modernos exige uma multidão de trabalhadores anônimos engajados em sua construção – homens como o atormentado Naziazeno de Os Ratos. A Porto Alegre que emerge do romance é ao mesmo tempo mais difusa (poucas são as passagens de fato descritivas) e mais crua do que a dos romances de Erico. Como afirma Cláudio Cruz em seu estudo fundamental sobre a literatura do período Literatura e Cidade Moderna, Dyonelio, “sem utilizar-se da descrição tradicional e empregando pequenas e breves indicações, situa firmemente suas ações em espaços bastante representativos da cidade real”.

A elevação da cidade ao protagonismo da ficção gaúcha logo estabelece também as bases para um romance histórico que trate não do mítico passado guerreiro do pampa, mas da própria constituição do espaço urbano. É o que fará Darcy Azambuja em Romance Antigo. Também Luiz Antonio de Assis Brasil se ocupará da Porto Alegre histórica em mais de um romance, particularmente no melancólico Um Quarto de Légua em Quadro, um relato antiépico das origens do povoamento da região, e Cães da Província, mordaz retrato que vai na contramão da autoimagem de uma Porto Alegre “Belle Époque”, como mencionado antes.

Outro autor que, mesmo afastando-se por vezes no tempo e no espaço, tornou Porto Alegre um tema recorrente de sua ficção foi Moacyr Scliar, que pintou a cidade com tons oníricos e humorísticos num bom número de seus romances e contos – mais especialmente A Guerra no Bom Fim, Os Voluntários, Os Mistérios de Porto Alegre, O Centauro no Jardim e O Exército de um Homem Só. Scliar, no entanto, não hesitava quando pensava que deveria desenraizar seu texto do espaço de Porto Alegre para reenraizá-lo em temas bíblicos e no passado da humanidade.

Outros autores contemporâneos de Scliar também farão o mesmo, detonando um processo que pode ser traçado até a atual geração de criadores. Caio Fernando Abreu mergulha suas histórias em uma atmosfera pop que a seu modo rejeita o realismo – e, por tabela, a representação urbana tradicional, ainda que algumas histórias sejam ambientadas em pontos reconhecíveis da cidade. João Gilberto Noll, por sua vez, descreve pouco o ambiente externo em que seus heróis se movimentam. Também desloca com desenvoltura o espaço físico de seus romances – algumas de suas principais e mais aclamadas obras se passam fora de Porto Alegre, como A Fúria do Corpo (no Rio), Harmada (em um país fictício) ou Lorde (em Londres).

Do triunfalismo orgulhoso de Caldre Fião em um romance publicado nos anos 1840 até o sarcasmo de uma recente obra de Adriana Lunardi, Cultura apresenta nesta e nas duas próximas páginas uma breve e incompleta seleta de retratos literários da aniversariante Capital.

sexta-feira, 23 de março de 2012

UMA PORTO ALEGRE QUERIDA QUE MERECE MAIS CUIDADO

Editorial JORNAL DO COMÉRCIO, 23/03/2012



O que dizer para uma cidade que está completando 240 anos? Tudo o que nossos antepassados sabiam. Em 26 de março de 1772 aqui chegaram 60 casais açorianos. Parte desses casais se fixou no Porto de Viamão, depois freguesia de São Francisco do Porto dos Casais, Porto de Viamão, Nossa Senhora da Madre de Deus de Porto Alegre e, em julho de 1773, quando era governador José Marcelino de Figueiredo, recebeu o nome de Porto Alegre. Somos modernos, mas não esquecemos o passado. Pelo contrário, o cultivamos. Tivemos fases de agitação, de ebulição política, de movimentos revolucionários, festas imponentes como a Exposição do Centenário Farroupilha, em 1935, e cujo grande legado foi o Parque Farroupilha, a querida Redenção. Ser porto-alegrense deveria ser sinônimo de felicidade. Afinal, a felicidade não depende do que acontece ao nosso redor, senão do que acontece dentro de nós mesmos. Nesta cidade, a felicidade é medida pelo espírito com que enfrentamos as dificuldades da vida. É que a felicidade é um estado de ânimo, pois não somos felizes até que decidamos sê-lo. Em Porto Alegre, a felicidade não consiste em fazer sempre o que queremos, senão a querer tudo o que fizemos, com alegria e entusiasmo. Os porto-alegrenses não têm uma receita única para serem felizes, pois felicidade não tem receitas. Cada um de nós a cozinha com o tempero de sua preferência. Em cada bairro, em cada rua, em cada caminhada e sempre com o pôr do sol mais lindo do mundo.

No entanto, o que diriam nossos pioneiros do final do século XIX e início do século XX se pudessem revisitar o povoado, a freguesia, a vila e a hoje cidade de Porto Alegre? No aspecto visual teriam, provavelmente, dois sentimentos antagônicos. Primeiro, não acreditariam que aquele acampamento à beira do rio hoje é uma grande cidade.

Não entenderiam os altos edifícios, a correria dos veículos, a pressa das pessoas, o barulho e o tipo de vida absolutamente diferente do bucolismo que se acostumaram. Ficariam estupefatos com a grandeza e o número de habitantes. Simultaneamente, criticariam o mau aspecto e a falta de cuidados quando os porto-alegrenses sujam as ruas. Pichações em prédios públicos e particulares com manuscritos grotescos onde o que importa é emporcalhar sem qualquer sentido.

Nossos avós e bisavós viveram em uma cidade onde o Centro encantava os jovens dos anos de 1930 a 1970 onde todos iam para verem e serem vistos. Tudo passa na vida, mas existe apenas o presente e que, por isso mesmo, se chama presente, afirmam alguns. Mas o presente de hoje será passado amanhã e antecederá o futuro do outro dia. Cidade com 1,4 milhão de habitantes, 700 mil veículos, com muitos espaços vazios e sempre progredindo. Porto Alegre, apesar de alguns problemas, é demais. Acabamos nos apaixonando por ela. Com tantos encantos na zona Sul, na zona Norte, no Centro, no Mercado Público, na Volta do Gasômetro, na Cidade Baixa, na Azenha, Menino Deus, Partenon, Glória e Teresópolis, na querida mas tão maltratada avenida Borges de Medeiros, no Alto da Bronze, no entorno das praças da Alfândega e da Matriz. Uma cidade que depende de seus cidadãos para ser ainda melhor, mais bonita, acolhedora e tranquila, sem tanta violência. Que possamos caminhar despreocupados olhando vitrines, indo a cinemas, jantando fora, visitando amigos. Que não sejamos obrigados a ficar vigiando para todos os lados com medo do perigo à espreita. Nossos filhos e netos merecem, daqui a 20, 30 ou 40 anos, dizer que a Porto Alegre em que estarão vivendo é tão boa quanto falavam seus pais e avós. Depende só de nós.