sábado, 24 de março de 2012
AS NARRATIVAS DA CIDADE
CARLOS ANDRÉ MOREIRA, ZERO HORA 24/03/2012
Do triunfalismo orgulhoso do século 19 ao humor ácido do 21, os escritores gaúchos criaram uma Porto Alegre múltipla na literatura ficcional produzida na cidade
Uma cidade não se constrói apenas com pedra e asfalto, mas com representações. Nesse sentido, examinar a maneira como os escritores retrataram a Porto Alegre que na segunda-feira completa 240 anos é também fazer um passeio elíptico pela imagem que a própria Capital faz de si mesma. É também reencontrar, ainda que na imaginação, uma Porto Alegre apenas entrevista nas ruínas urbanas que uma cidade em crescimento constante deixa atrás de si.
As representações urbanas da cidade no século 19 tendem a enfatizar seu caráter de sociedade paroquial, um lugar que, embora grande em comparação às demais do Estado, ainda é uma comunidade de poucos habitantes e ritmo ameno. A concepção da Porto Alegre do século 19 e início do 20 como uma joia da Belle Époque é um clichê recorrente da literatura que se ocupou da cidade, e parece ter origem já nas obras daquele período, como no romance O Perdão de Andradina de Oliveira, uma história de adultério que faz seus personagens passearem pela cidade em 1910, nascente metrópole com seus bondes, confeitarias chiques, fábricas, banda marcial e iluminação elétrica.
Significativamente, Porto Alegre começa a ganhar espaço não só como pano de fundo, mas como cenário ficcional com caráter próprio, em simbiose com seus personagens, a partir dos anos 1930, quando a cidade também passa por um surto de expansão física e modernização urbana e tecnológica. Clarissa, de Erico Verissimo, um dos marcos dessa explosão urbana moderna na literatura do Estado, é de 1933. Os Ratos, de Dyonélio Machado, outro romance inaugural, é de 1935. O mesmo período de meados da década de 1930 é que testemunha a abertura da Avenida Borges de Medeiros e a construção do Viaduto Otávio Rocha – obras públicas de grande envergadura com as quais, lembra a arquiteta Cláudia Pilla Damásio em sua dissertação Porto Alegre na Década de 30: Uma Cidade Idealizada, Uma Cidade Real, a intendência municipal, de inclinação positivista, dedicava-se a um projeto de modernização de Porto Alegre. É o mesmo período em que Erico desenvolverá o seu “Ciclo de Porto Alegre”, inaugurado com Clarissa e encerrado com O Resto é Silêncio, de 1943.
– Embora se contem exemplos anteriores de literatura urbana, não é uma coisa significativa. A figura chave é mesmo a partir daquele momento. No Erico, com Clarissa, a cidade faz parte da experiência dos personagens, o modo como eles agem é condicionado pelos espaços do município em que atuam. A cidade no Erico não é só pano de fundo, é personagem – comenta a professora da UFRGS Regina Zilberman, autora de A Literatura no Rio Grande do Sul.
Erico apresenta uma visão ao mesmo tempo lírica e melancólica da cidade, descrita com a exuberância visual e plástica com que o autor construía os cenários de seus romances. É uma descrição de um autor maravilhado ele próprio com a Porto Alegre que se ergue a seu redor. Como apontou um dos primeiros críticos de Caminhos Cruzados, Dante Costa, a descrição que Erico faz da cidade “é uma espécie de exposição enternecida do quotidiano, com comentários e poesia. Assim como se o autor, de repente, se alçasse sobre a vida, e de uma distância breve, que permitisse a visão geral e também a sinuosidade dos detalhes, nos mostrasse o que acontece”.
Já Dyonélio desce o olhar ao rés-do-chão para flagrar as figuras miúdas esmagadas pelo processo de urbanização. O crescimento de uma cidade capitalista nos moldes modernos exige uma multidão de trabalhadores anônimos engajados em sua construção – homens como o atormentado Naziazeno de Os Ratos. A Porto Alegre que emerge do romance é ao mesmo tempo mais difusa (poucas são as passagens de fato descritivas) e mais crua do que a dos romances de Erico. Como afirma Cláudio Cruz em seu estudo fundamental sobre a literatura do período Literatura e Cidade Moderna, Dyonelio, “sem utilizar-se da descrição tradicional e empregando pequenas e breves indicações, situa firmemente suas ações em espaços bastante representativos da cidade real”.
A elevação da cidade ao protagonismo da ficção gaúcha logo estabelece também as bases para um romance histórico que trate não do mítico passado guerreiro do pampa, mas da própria constituição do espaço urbano. É o que fará Darcy Azambuja em Romance Antigo. Também Luiz Antonio de Assis Brasil se ocupará da Porto Alegre histórica em mais de um romance, particularmente no melancólico Um Quarto de Légua em Quadro, um relato antiépico das origens do povoamento da região, e Cães da Província, mordaz retrato que vai na contramão da autoimagem de uma Porto Alegre “Belle Époque”, como mencionado antes.
Outro autor que, mesmo afastando-se por vezes no tempo e no espaço, tornou Porto Alegre um tema recorrente de sua ficção foi Moacyr Scliar, que pintou a cidade com tons oníricos e humorísticos num bom número de seus romances e contos – mais especialmente A Guerra no Bom Fim, Os Voluntários, Os Mistérios de Porto Alegre, O Centauro no Jardim e O Exército de um Homem Só. Scliar, no entanto, não hesitava quando pensava que deveria desenraizar seu texto do espaço de Porto Alegre para reenraizá-lo em temas bíblicos e no passado da humanidade.
Outros autores contemporâneos de Scliar também farão o mesmo, detonando um processo que pode ser traçado até a atual geração de criadores. Caio Fernando Abreu mergulha suas histórias em uma atmosfera pop que a seu modo rejeita o realismo – e, por tabela, a representação urbana tradicional, ainda que algumas histórias sejam ambientadas em pontos reconhecíveis da cidade. João Gilberto Noll, por sua vez, descreve pouco o ambiente externo em que seus heróis se movimentam. Também desloca com desenvoltura o espaço físico de seus romances – algumas de suas principais e mais aclamadas obras se passam fora de Porto Alegre, como A Fúria do Corpo (no Rio), Harmada (em um país fictício) ou Lorde (em Londres).
Do triunfalismo orgulhoso de Caldre Fião em um romance publicado nos anos 1840 até o sarcasmo de uma recente obra de Adriana Lunardi, Cultura apresenta nesta e nas duas próximas páginas uma breve e incompleta seleta de retratos literários da aniversariante Capital.
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