domingo, 11 de dezembro de 2011
DE VOLTA AO GUAÍBA
A redescoberta das águas. Há décadas desprezada, a orla de Porto Alegre volta a despertar o encantamento de uma época em que o Guaíba era o epicentro da vida gaúcha - ITAMAR MELO, ZERO HORA 11/12/2011
No mês passado, uma faixa de terra à beira do Guaíba, em Eldorado do Sul, recebeu seus dois primeiros moradores. Os médicos Thiago Krieger Bento da Silva, 36 anos, e Ana Paula Zanardo, 33 anos, deixaram para trás um apartamento no bairro Bela Vista, em Porto Alegre, para viver em uma casa debruçada sobre a orla, do outro lado da ponte, em um local onde o concreto da metrópole deixa de ser incômodo para virar cenário.
Pioneiros e ainda solitários habitantes dos condomínios em construção na região, Thiago e Ana Paula são a face de uma reviravolta. Depois de exilar o Guaíba detrás de um muro e passar décadas crescendo para o outro lado, a Capital e seu entorno vivem um momento de reapaixonamento pela orla. Essa redescoberta colocou em movimento um conjunto de empreendimentos que está devolvendo ao Guaíba a condição que ele tradicionalmente teve ao longo da História: a de centro da vida afetiva do Rio Grande do Sul.
Uma pequena mostra de como o passado está se transformando em futuro é o sucesso da linha de catamarã recém-inaugurada entre Porto Alegre e Guaíba. Retomada de um serviço que marcou a cidade quando ela vivia voltada para as águas que a banham, a reedição do transporte fluvial provocou uma revolução no município de Guaíba, que da noite para o dia redescobriu o papel de polo turístico que desempenhava poucas décadas atrás.
Para o corretor de seguros Fernando Ferlini de Araujo, embarcar no novo catamarã foi como entrar em uma máquina do tempo. Durante os 20 minutos de travessia, ele evocou os verões da infância, quando sua família se transferia da residência no centro da Capital para uma casa de veraneio mantida em Guaíba. O trajeto era feito em barcas de convés baixo que enchiam as águas de vida, transportando pessoas e veículos – incluindo ônibus. Viajando agora, porto-alegrenses como o corretor de seguros renovam emoções:
– Usei o catamarã para visitar parentes e senti nostalgia daquela época – conta ele, hoje com 56 anos.
Cais era coração de Porto Alegre
Ainda menino, Araujo viveu os últimos dias do Guaíba como epicentro da vida gaúcha. Estuário para onde corriam rios nascidos em diferentes regiões e ligado ao mar pela Lagoa dos Patos, o Guaíba ofereceu, na época da colonização, as condições geográficas perfeitas para servir de coração econômico e político do Estado. Pariu a Capital e moldou o Estado. Essa condição persistiu até meados do século passado, quando Porto Alegre ainda vivia voltada para seu porto, de onde partiam para outras cidades os vapores de passageiros.
Naquela época, a outra margem era destino turístico. No verão, famílias da Capital faziam a travessia para desfrutar das movimentadas praias de Guaíba. Araujo deixava a residência na Duque de Caxias, no Centro, com a mãe e sete irmãos, para voltar no fim da temporada. A estação das barcas ficava na Vila Assunção. A média era de 2 mil pessoas transportadas por dia. O pai de Araujo, que tinha de trabalhar na Capital, ia e voltava de barca todos os dias. A criançada aproveitava as praias da Alegria e da Florida.
– Na época, essas praias eram o nosso litoral. Eram muito boas e movimentadas, principalmente nos finais de semana. Havia um trapiche que recebia vapores de Porto Alegre – conta o corretor.
Passado meio século, iniciativas como a despoluição das águas, a remodelação da orla entre o Gasômetro e a Zona Sul, além da prometida segunda ponte, somam-se à revitalização do Cais Mauá, prestes a ser iniciada, para conduzir Porto Alegre de volta aos bons tempos. Segundo a arquiteta Maria Isabel Marocco Milanez, professora do UniRitter, vive-se o início de uma mudança.
– Porto Alegre cresceu radialmente, para longe do Guaíba. Agora vai crescer longitudinalmente, ao lado da orla. O que estiver a uma, duas, três ou mesmo quatro quadras dela será zona nobre. Depois da revitalização do cais, o Moinhos de Vento vai descer para o Quarto Distrito – diz a professora, referindo-se, respectivamente, ao bairro que é sinônimo de abastança e a uma zona contígua ao Guaíba conhecida pela degradação.
Espera-se que o principal impacto da revitalização do cais ocorra sobre o bairro onde ele se encontra, o Centro, uma área que já começou a se revalorizar, depois de décadas de declínio, e que deve recuperar a aura elegante dos dias do passado, quando era uma continuação do Guaíba. Para Gilberto Cabeda, da direção do Sindicato da Habitação do Estado (Secovi), o efeito mais benéfico do projeto do cais pode vir das torres de negócios previstas para a área próxima à Rodoviária. Ele acredita que o empreendimento pode induzir investimentos nas imediações, justamente a zona mais desvalorizada do Centro.
– A pessoas querem se instalar perto de outros empreendimentos que sejam bonitos e sofisticados – explica.
Época de ouro - As praias de água doce
Falar de praia, para muitos porto-alegrenses, é evocar as imagens e as águas salgadas do Litoral Norte ou da orla catarinense. Mas nem sempre foi assim. Os moradores da Capital já tiveram as águas do Guaíba como referência para banho, lazer e diversão – tudo isso ao alcance da cidade.
No início do século 20, por exemplo, as praias da Pedra Redonda já eram disputadas para passeios – tanto para quem chegava de barco pelo Guaíba quanto para quem se deslocava em trens do centro da cidade.
A vizinha Ipanema se consolidou como balneário, com casas de veraneio e sedes campestres de clubes, até que nos anos 1950 passou a ser também residencial. Mais para o sul, o Lami abrigava pescadores que – antes da década de 1970, quando a poluição passou a dominar as águas – extraíam do Guaíba o seu sustento.
E não só em Porto Alegre era assim. Muitas famílias faziam questão de garantir seu veraneio do outro lado do Guaíba, na Praia da Alegria, município de Guaíba – na qual as águas eram até mais limpas, atraindo veranistas de temporada ou de fim de semana. Sinal de que o Guaíba e as cidades que o rodeiam podem, sim, viver uma relação cada vez mais próxima.
O balneário da felicidade - Por anos, a Praia da Alegria, em Guaíba, foi um dos locais de veraneio preferidos por porto-alegrenses, que alugavam ou mantinham casas para aproveitar férias ou fins de semana.
Passeio na Zona Sul - No início do século 20, Ipanema ainda era uma região desabitada. Nos fins de semana, moradores de Porto Alegre faziam piqueniques nas praias do bairro da Zona Sul.
Símbolo de uma era - O vão móvel faz da Ponte do Guaíba o ponto mais vistoso da Travessia Régis Bittencourt – que inclui outras três pontes sobre o Delta do Jacuí e foi inaugurado em dezembro de 1958.
Época de ouro - Doca das frutas - Nos anos 1960, antes do Muro da Mauá, a doca onde hoje está o terminal do catamarã era um ponto de turismo e comércio. Além de barcos de passeio, atracavam ali embarcações com frutas.
Outros verões em Ipanema - JANETE DA ROCHA MACHADO, historiadora, pesquisadora da zona sul de Porto Alegre e blogueira do ZH Zona Sul
Em janeiro dos anos 1970, a praia de Ipanema era um local aonde se dirigiam os porto-alegrenses que buscavam amenizar o forte calor. A orla ficava tomada de gente. Lembro-me de que minhas primas tinham por hábito visitar-me – evidentemente, não pelos laços familiares, mas para desfrutar de banhos no Guaíba.
Ainda que as águas já estivessem um pouco poluídas, os banhistas – mirins, como eu – insistiam naquela diversão. Os pais, via de regra, proibiam tal prática – entretanto, nós, ainda crianças, burlávamos a vigilância para aquela brincadeira tão prazerosa que incluía os mergulhos, a coleta de conchas e o bate-papo na areia para secar o corpo ao sol. Numa dessas fugas tão frequentes, fomos apanhados em delito, o que nos rendeu umas boas chineladas e a proibição de sair de casa durante aquele verão.
Anos depois, já na adolescência, a praia de Ipanema reunia todas as tribos. Chamavam-me a atenção as jovens bem postadas em carros conversíveis, como o Puma GTB, ostentando elegantes chapéus e corpos esculturais e bronzeados, minimamente cobertos por tangas, moda originária da Praia de Ipanema do Rio de Janeiro. Usava-se o bronzeador Rayto del sol ou a fabricação caseira – óleo Johnson’s com semente de urucum – para dourar a pele. Ao entardecer, os casais rumavam para a Taba, um ponto de encontro bastante conhecido, para conversas regadas a chope e batatas fritas.
Essas lembranças não trazem apenas saudades, mas a constatação de que há muitos anos não se usufrui o Guaíba e Ipanema como se gostaria. Uma questão a ser discutida pelas autoridades envolvidas com os planos de revitalização da orla e dos bairros da Zona Sul de Porto Alegre.
Margem oposta valorizada
Empresários do setor de construção enxergam um potencial enorme na outra margem do Guaíba, onde há vastas terras desocupadas. A partir da percepção de que o sonho do porto-alegrense é morar como antigamente, em casas junto às águas, a projeção é de que o munícipio vizinho de Eldorado do Sul vire o novo bairro de casas de Porto Alegre.
Um exemplo dessa tendência é o empresário Diderot Menegassi Velloso, 65 anos. Morador de uma cobertura no bairro Bela Vista, ele comprou um lote em Eldorado, e suas filhas adquiriram mais dois. A ideia é que a família toda viva à beira do Guaíba. Antes de se decidir pela mudança, Velloso procurou alternativas na Zona Sul. Não encontrou o que procurava e optou pela outra margem.
– A segunda ponte (do Guaíba) vai sair. É questão de tempo. Além disso, a ponte atual tranca algumas vezes, enquanto as sinaleiras de Porto Alegre trancam sempre – argumenta o empresário.
Quando se mudar, Velloso vai reforçar a vizinhança dos médicos Thiago Krieger Bento da Silva, 36 anos, e Ana Paula Zanardo, 33 anos. O casal já está vivendo na orla. Eles se estabeleceram em um condomínio fechado próximo, o Ilhas Park, que a construtora Beralv prevê entregar em fevereiro. Os médicos se anteciparam e já estão usufruindo da moradia bucólica.
– Na beira do Guaíba, estamos vivendo outra vida. Não tem nem como explicar. A vontade de chegar em casa é outra – diz Ana Paula.
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